sexta-feira, 27 de junho de 2014

Eu perdi o Bolsa Família

Caio está com 9 anos. E ainda que desde seu primeiro ano de vida, eu ouvisse sobre a possibilidade de receber um benefício assistencial, ele só passou a ter direito a ele aos cinco anos, mais de ano após eu ficar desempregada e largar definitivamente a carreira de publicitária. Antes disso, me era claro, ele não tinha direito. Ainda assim, após ficar sem trabalho, custei a entender este benefício.

Ele recebe o BPC – Benefício de Prestação Continuada, no valor de um salário mínimo nacional, no caso dele, concedido como ajuda governamental à sua deficiência, sendo necessária a comprovação regular de que ele precisa – que tem despesas fixas altas e que a renda mensal familiar é baixa. Já o Bolsa-Família, sempre me pareceu óbvio que não tínhamos direito. No entanto durante um recadastramento, exigido pelo Ministério do Desenvolvimento Social, em 2012, ficou estabelecido pelo sistema – o literal, pelas “contas do computador” que, sim, tínhamos direito. Insisti junto ao CRAS que não me parecíamos família em condições socioeconômicas para receber o Bolsa. Em agosto de 2012 passei a receber R$ 64,00 mensais - R$ 32,00 por filho – Yuri e Caio. No recadastramento – que aí entendi – é anual, de 2013, o valor foi praticamente dobrado, novamente no automático, pelo sistema. Passei a receber 134,00 (valor este calculado para dois filhos). Nunca menti informações, nunca criei situações favoráveis nem alterei dados para o recebimento do benefício. Acredito que num país de tantas desiguldades sociais, ainda somos – eu e meus filhos – privilegiados. Mas, não era uma questão de eu querer o Bolsa Família. Repito: o sistema nos dava.

Mas, justamente, de um ano pra cá, ele passou a ser de grande ajuda. Caio tem suas sabidas intolerâncias alimentares, o que torna sua simples alimentação diária muito mais onerosa do que a que qualquer criança sem este tipo de intercorrência. Faz uso de três anticonvulsivos contínuos, não padronizados – o que significa que não são fornecidos pelo poder púbico – que alcançam o valor de R$ 1.000,00 mensais. Pago a ele um plano de saúde cuja mensalidade fica em torno de quase R$ 200,00. Luxo, alguns classificam. Sobrevivência e relativa tranquilidade, afirmo eu. Lembrando que Caio tem epilepsia de difícil controle, ao longo de três anos teve crises que exigiam suporte de oxigênio e outras intervenções médicas quase imediatas. Certa vez, sem plano de saúde, dependentes do SUS como a imensa maioria da população brasileira, ele teve uma crise e ficamos cerca de meia hora aguardando uma ambulância. Ela chegou sem NENHUM tipo de medicação ou cilindro de oxigênio. Seguimos até o Pronto Socorro com ele se debatendo em crise por mais uns 15-20 intermináveis minutos. E se não houveram complicações neurológicas, é porque nosso santo é forte. Com o convênio, quando necessário, temos uma ambulância totalmente equipada em, no máximo, 15 minutos. Soma-se à isso, a necessidade do Fortini, suplemento alimentar para crianças com intolerância e déficit nutricional e de peso. Que estamos com processo judicial há 10 meses. Mas que ainda não conseguimos receber. E que tem custado cerca de R$ 520,00 para fornecer as 13 latas que Caio necessita.

Logo, o BPC é um auxílio. Mas não supre – de longe – todas as necessidades do meu filho. E porque não entrei no mérito de fraldas, medicações para refluxo e outras despesas. Para minha péssima surpresa, desde o mês passado, perdi o benefício do Bolsa Família. Como durante a entrevista eu falei que no mês anterior tinha conseguido cerca de R$ 300,00 com meus docinhos, isto foi o suficiente para eu sair dos critérios do programa.

Vai me fazer uma puta falta! E me revolta em N questões. Sei que não pertenço às condições de miserabilidade que, em tese, o programa prega. Mas é isso: precisamos ser miseráveis para ter algum apoio governamental? Ou mais: se já não há – no meu caso – como atuar no mercado formal de trabalho, devo também me acomodar a ponto de não buscar alternativas de implemento de renda, é isso? Devo então me encaixar no sistema aclamado pela grande maioria de que tenho mesmo é que fazer mais filhos e me encostar total no benefício, sem tentar exercer qualquer atividade laborativa – ainda que informal? 

Eu tenho internet, alegam alguns. Se posso gastar quase R$ 100,00 por mês com internet, não sou mesmo merecedora de um benefício social. Sim, para receber o benefício social tens que ser alienada, semianalfabeta e não pode investir em renda extra. Eu gasto em internet, mas ela me retorna em quase 3X este valor por mês em bicos: docinhos, trabalhos acadêmicos, etc. Eu não preciso me justificar nem listar todas as mazelas que enfrento mês a mês para manter com dignidade meus filhos - e acreditem, muitos se espantariam em sabê-las.

Ok, eu não tenho direito ao Bolsa Família. E meu filho deficiente não tem direito aos medicamentos que necessita. Não conseguimos via judicial um alimento que foi pedido em caráter de urgência ano passado. Não temos direito a acessibilidade, inclusão, transporte digno, aceitação da sociedade. Ao mesmo tempo, ainda ontem, vi que para comprar somente o Fortini do Caio, o governo me abocanha 48% (cerca de R$243,00 mensais) em impostos. Para quê? Aonde este imposto está me retornando? Não é na saúde, não é na infraestrutura das calçadas da minha rua... Ou seja, nessa hora, só consigo ver claramente que o governo caga para o meu filho, para nossas dificuldades, para a possibilidade dele ter sua vida totalmente comprometida pela omissão do poder público.


Sou contra o assistencialismo. Mas é revoltante ver a falta de amparo governamental às minorias – nem tão minorias assim, estatisticamente comprovado – e aí incluo as questões de igualdade social mesmo – independente de condição física, orientação sexual, credo, raça. Relembro sempre o episódio em que recebemos de presente de uma amiga, um oxímetro portátil importado (que usamos sempre, de grande valia para os períodos de crise convulsiva de Caio) via Correios. Tivemos que pagar de impostos mais do que o que ela tinha pago pelo produto originalmente. Caio tinha que pagar impostos, como qualquer cidadão. Na volta pra casa – do posto de Correios que fica no centro da cidade – este mesmo pequeno cidadão amargou mais de uma hora no ponto de ônibus à espera de um veículo adaptado que o conduzisse em sua cadeira de rodas. Temos muitos deveres. E cada vez menos direitos. Agora mesmo, o governo descobriu que eu não tenho direito ao Bolsa Família. Então eu pergunto: tenho direito ao quê, mesmo???

Nenhum comentário: