domingo, 26 de janeiro de 2014

Rumo aos 9 anos

Daquela série: nem tudo são flores. Principalmente os sentimentos da gente, às vezes. Todo o amor que dedico a meu Caio é legítimo, sincero, visceral. Mas como dois lados de uma mesma moeda, existe o lado que sofre, que cansa, que questiona. Desde o finalzinho de 2013 ando, mais uma vez, reflexiva sobre o tempo. Neste ano, meu Ito completará nove anos!



São nove anos de muita luta. De buscar tratamentos, alternativas. De conhecer mais intercorrências, interações medicamentosas. Se o passar do tempo me trouxe certa tranquilidade para lidar com o que, afinal, é nossa rotina; em contrapartida traz a inquietude das respostas que não existem: haverá melhora? estou no caminho certo? deveria deixar de fazer este ou aquele tratamento e buscar algum outro? Não sabemos. Parece que sim, mas nada é certeza, tudo é tão somente tentativa.



Se as lutas cotidianas de realizar terapias de reabilitação - a maioria mais moderna não coberta pelo SUS nem por convênios -, de investigar a melhor alimentação para uma criança alérgica, a busca incessante por meios de diagnósticos mais completos e precisos, por métodos de estimulação que sejam eficazes e ao mesmo tempo prazerosos, ter que travar batalhas judiciais longas para tentar conseguir a medicação contínua, o leite especial necessário, a batalha diária de fazer valer os nossos direitos quase sempre não respeitados de acessibilidade e inclusão... se tudo isso, que é tão somente o nosso dia a dia, já é deveras degastante, devo dizer para vocês: é ainda mais difícil.



Acredito piamente que a mais árdua das lutas é aquelas que travamos dentro da gente, com sentimentos naturalmente conflitivos. Há 9 anos me tornei a mãe do Caio. E isso cada vez se torna mais forte, com o passar deste mesmo tempo, porque afinal ele é a minha vida! Mas e eu? Meus sonhos, meus desejos, minha individualidade? Sim, babies, na maioria das vezes, sufocados pela correria cotidiana. Se o desejo de progressos do meu filho são, prioritariamente, por ele, por sua felicidade, autonomia e plenitude, são também por mim. Para que eu possa simplesmente respirar às vezes.




Mas o tempo, já escrevi muito sobre isso, é algoz. São nove anos em que meu coração espera por melhoras gritantes. E por mais que avanços importantes aconteçam (sim, aquele duelo eterno, racionalmente sei disso), eles não vêm na velocidade e na medida que os sentimentos maternos gostariam. Porque sim, nós mães de crianças deficientes, lutamos todos os dias, no fundo esperando pelo improvável na maioria dos casos: que eles andem, que eles falem, que sentem sozinhos, que se alimentem com suas próprias mãos. Desejos tão simples, tão pequenos, para a grande maioria. Objetivos arduamente batalhados todos os dias, em cada terapia, em cada movimento que fazemos com eles e por eles. 



São nove anos em que ainda me choco - cada vez menos, é verdade, e eu não sei se ficar calejada assim é bom ou mau - com o preconceito das pessoas, com a dificuldade do ser humano em lidar com o diferente. Uma criança deficiente. Tão difícil enxergarem a criança! Tão fácil negar vistas à deficiência que incomoda pedindo passagem na calçada, lugar no ônibus, atendimento preferencial... Quase nove anos que me pergunto se ainda dará tempo de fazermos mais, se já não está ficando tarde a ponto de ser tornar impossível. Tenho medo de uma adolescência difícil para ele, de uma vida adulta difícil, onde meu amor de mãe talvez não seja mais suficiente para ampará-lo.



Nove anos - no meu caso - com um lado não luz que ainda questiona o erro médico que lhe deixou essa marca permanente chamada paralisia cerebral. Nove anos que em algumas noite derramo no meu travesseiro as lágrimas da dor que transbordam do meu coração. Mais de cinco anos buscando a justiça dos homens para trazer um pouco de alento e conforto à nossa história.




Sim, a moeda com dois lados. 

Ao lado do amor, tem a gratidão pelos quase nove anos em que deixei de olhar para meu umbigo e passei a enxergar, através dos olhos do meu filho, o próximo. Em que vamos sobrevivendo com o apoio, o carinho e a solidariedade alheia. E que vou entendendo que o sentido da vida é levar adiante somente estes bons sentimentos. Mas é, como tudo, um desafio.



Sejamos bem-vindos ao nosso nono ano, filho! Por vezes é difícil, é dolorido. Mas é gratificante ir aprendendo do quanto somos capazes. Lá atrás, naquela UTI Neonatal, quando tua vidinha era só um fio de luz, quase se esvaindo, eu pedi a Deus a oportunidade de lutarmos. Ele nos concedeu. Bora lá seguir fazendo nosso melhor com esta grande chance que recebemos. Há quase nove anos.

sábado, 25 de janeiro de 2014

O que é prioridade?

Caio é uma criança saudável mas, ao mesmo tempo, com intercorrências esperadas para sua paralisia cerebral. Uma delas é a dificuldade de deglutição para alimentos sólidos. Se ele não precisa de uma dieta necessariamente pastosa, os alimentos precisam ser cortados e esmagadinhos bem miudinho. Para somar, não ligado ao seu quadro, as alergias alimentares: intolerância à proteína bovina - o que lhe impede o consumo de leite de vaca e seus derivados e carne bovina. E algumas outras, tais como banana, manga e uma indigestabilidade ao glúten, o que é indicativo de uma dieta restrita de farináceos em geral.

Considerando que, também para seu quadro neurológico, Caio consegue movimentar-se bastante e se esforça para sentar, ficar em pé e realizar tarefas com alguma autonomia, ele tem um gasto calórico muito grande. O resultado foi uma grande perda de peso em 2013 - dois quilos, o que para ele, representava 30% do peso corporal. Aos 8 anos, Caio foi para os 13 quilos, entrando de acordo com a tabela da OMS em quadro de desnutrição.

Consultamos com a pediatra, iniciamos tratamento com a nutricionista e lhe foi indicado dois leites como suplemento nutricional e calórico. Nutren e Fortini - ambos sem glúten nem lactose, aptos para crianças de até 10 anos. O primeiro, só existe saborizado - com sabores de chocolate, baunilha e morango - e é o que a Prefeitura fornece gratuitamente no Departamento de Nutrição. Caio nunca tolerou leites saborizados, seja qual for o sabor. Do Nutren, ele acaba aceitando, quando muito, uma dose diária. Logo, o  Fortini, sem sabor (ou sabor neutro) foi o que agradou ao paladar do Caio e o qual ele aceita na dosa diária recomendada - 3 doses diárias. E o Fortini só é fornecido pelo Estado, mediante solicitação judicial.



Entrei em setembro com o pedido de liminar, esperando que no máximo em 30 dias, teríamos a concessão. Outubro. Novembro. Dezembro. Nada. Ao consultar a situação do processo descobri que: 1. o advogado da defensoria pública distribuiu o processo somente em 13 de novembro! Quase 60 dias depois de eu levar toda a documentação e ele redigir a petição inicial. E olha que eu deixei bem claro a nossa necessidade, pois não dispomos de condições de comprar 13 latas mensais a 40 reais cada! 2. Fica ainda melhor: o juiz determinou que nosso assunto é de BAIXA PRIORIDADE de julgamento. E assim, entramos em 2014 dependendo de ajuda e doações para ele continuar seu tratamento - que tem dado muito certo, ele conseguiu em dois meses recuperar o peso perdido, mas ainda precisa ganhar mais 3 quilos para se enquadrar no peso ideal mínimo para sua idade.

Tudo isso exposto, eu só queria uma resposta: o que é prioridade para ser julgado com agilidade? Se uma criança com paralisia cerebral, refluxo gastroesofágico, síndrome convulsiva de difícil controle, intolerância alimentar e peso na linha de desnutrição, não é prioridade, então não sei. Ah, sim. Sabem o Lulu? Aquele aplicativo que surgiu em dezembro para as mulheres avaliarem os homens com os quais já se relacionaram? Pois é. Em 30 dias, a justiça expediu uma liminar impedindo que pessoas que não expressem seu consentimento tenham dados ou imagens expostos no software. Essa é a prioridade do nosso Brasil.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Férias pra quem mesmo?

E lá se foi mais de um mês que as aulas dos guris terminaram; menos de 30 dias para que recomecem. Aí as pessoas me perguntam das férias. Férias pra quem, cara-pálida? Só estou tendo uma folguinha de acordar cedo para chamar seu Yuri para suas aulas. Após um breve recesso entre Natal e Ano Novo, ele voltou os treinos do futebol, o que me obriga a servir o almoço cedo nas segundas e quartas.

Caio, por sua vez, tem tido terapias de reabilitação 4X na semana, folgando só quinta e finais de semana. Segunda e quarta tem CME; terça, equoterapia; sextas, fisio na ACADEF. Nesse meio tempo tenho que aproveitar as férias (oi?) escolares para colocar em dia os check ups médicos dos dois - pediatra, dentista, exames de rotina...

Ou seja, continuo tendo horário rígido para as refeições e tendo que andar com uma agenda a tiracolo para não me confundir com tantas atividades. E na carona de tudo isso, vem a preocupação em como organizar a agenda do Caio para 2014 - mas isso é assunto para outro post.

Férias? O calor me deixa cansada, o tempo corre contra uma mente que precisa ainda organizar tanta coisa antes da muvuca realmente recomeçar... Dormir até tarde já é uma boa para quem tem tido tantas brigas com o sono noturno, mas eu sinto saudades de quando conhecia o significado verdadeiro dessa palavrinha tão comemorada nessa época do ano.

De qualquer forma, é uma época com menos correrias. Deixa assim. Melhor não pensar em como vai voltar a ser no final de fevereiro. Ao menos mentalmente, deixa eu curtir minhas férias.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Transporte público e vergonhoso

À medida que recebi o diagnóstico da paralisia cerebral de Caio e o que isso podia significar em nossa vida, aprendi também que especialmente as mães de crianças deficientes têm a fama de serem revoltadas. Não entendia. Hoje entendo perfeitamente. Não somos revoltadas pelas patologias de nossos filhos e as dificuldades que isso pode acarretar a nossas vidas pessoal, profissional, familiar. Somos revoltadas porque ter um filho com deficiência é uma condenação vitalícia a pedir sempre por favor por aquilo que é simplesmente nosso direito básico de existir e sobreviver.

Explico: o transporte público é o maior exemplo disto. 
Moro em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. Para me deslocar à capital para fisioterapias, tratamentos, consultas médicas, tenho duas opções - o metrô e o ônibus. O ônibus, que poderia ser o meio mais prático e rápido, não disponibiliza veículos adaptados a cadeirantes. A solução? Contar com a boa vontade de motoristas e cobradores para que nos ajudem a embarcar e desembarcar com a cadeira de rodas. Alguns, se negam. Liguei para a empresa responsável e me respondem que eles não tem obrigação (???!!!) de transportar cadeirantes em ônibus não-adaptados pois é perigoso se responsabilizar por eles. Rebato que eles são responsáveis por TODOS os passageiros que transportam, os com deficiência e os sem. Peço então, se seria possível destacar um dos raríssimos (2 ou 3 veículos para mais de 70 linhas) veículos adaptados a pelo menos um de meus horários de necessidade. Recebo a informação de que esta decisão não é deles, mas da reguladora do transporte metropolitano, a Metroplan. Liguei para lá em setembro do ano passado, não me atenderam. Enviei email e estou aguardando a resposta até hoje. 
Ah, sim, o metrô. Para chegar até a estação, preciso de um ônibus. As linhas que oferecem a modalidade integrada - aliás da mesma empresa do transporte intermunicipal - adivinhem? não tem veículos adaptados. Ou seja, viramos reféns em nossa própria cidade. Ou reféns da bondade alheia.

Semana passada aconteceu de novo. Fui pegar o ônibus que duas vezes na semana uso para levar Caio ao Cuevas, em Porto Alegre. Existe uma linha intermunicipal que me deixa bem próximo da sua terapia. Mas não é adaptado. Ir, eu sempre consigo, motorista e cobrador são compreensivos e nos ajudam. Só que semana passada, além do veículo não ser adaptado, a porta traseira ainda tinha uma barra de ferro que impede que a cadeira entre no veículo, mesmo que elevada pelos braços de outras pessoas. A sorte é que eu não estava sozinha no ponto de ônibus e aí o pai ficou, com a cadeira do Caio, e eu segui carregando ele no "muque". A cobradora me questiona, cheia de razão: tu deverias esperar o próximo ônibus. O quê? Esperar o próximo? Cujo intervalo é de hora em hora? Ainda respondi: tenho horário para a terapia dele, não posso esperar.

E aí a ficha cai de novo, quando a gente quase quer esquecer: é isso que revolta! Temos que viver nos justificando. Olha, eu não estou passeando, viu? Temos compromissos de saúde! Danem-se o que vamos fazer! Não interessa onde estou tentando ir, com que propósito! Não perguntam aos demais passageiros, se eles precisam mesmo pegar este ônibus ou se preferem ficar uma hora plantados na parada esperando o próximo! 

O que revolta e cansa exaustivamente é estarmos sempre tendo que dizer onde estamos indo, o que estamos indo fazer, porque precisamos mesmo ir naquele dia, naquele horário, naquele ônibus! A resposta é a mesma: NÃO INTERESSA! Estão nos desrespeitando no direito mais básico do ser humano, que é o de ir e vir. Cansa ter que sorrir e toda hora pedir: "por favor, pode me ajudar a entrar com a cadeira?", "por favor, podemos nos locomover?", "por favor, podemos ir?". "Muito obrigada por nos permitir fazer um tratamento de saúde", "muito obrigada por sua gentileza que nos permite dar um passeio", "muito obrigada por nos deixar ir e voltar pra casa", "muito obrigada por nos deixar existir!". Por mais que eu saiba que sim, nenhum homem é uma ilha e todos precisamos uns dos outros... é desgastante ter que pedir e agradecer para ver respeitado - em parte - um direito tão essencial.

Onde ficam as secretarias ou coordenadorias de defesa dos PCDs? Antes disso, como sempre defendo, os direitos, simplesmente, de um ser humano? De que adiantam as leis de acessibilidade que não são respeitadas? Como pode um país que quer tanto ser reconhecido como desenvolvido ter um transporte público absolutamente vergonhoso e excludente?

Quando saio de uma cidade para outra, num verão com sensação térmica de 44 graus, com meu filho, uma criança cadeirante - passando ainda mais calor que as demais pessoas por sua condição física, para tentar melhorar em parte sua qualidade de vida e ouço de um prestador de serviço público que o correto seria eu esperar mais uma hora por outro veículo que sabemos - não será o ideal - o sentimento que tenho não pode ser outro senão o de muita revolta. Jamais com meu filho. Mas como um sistema público e uma sociedade que lhe fecham as portas, tentando lhe ignorar a existência.