quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Transporte público e vergonhoso

À medida que recebi o diagnóstico da paralisia cerebral de Caio e o que isso podia significar em nossa vida, aprendi também que especialmente as mães de crianças deficientes têm a fama de serem revoltadas. Não entendia. Hoje entendo perfeitamente. Não somos revoltadas pelas patologias de nossos filhos e as dificuldades que isso pode acarretar a nossas vidas pessoal, profissional, familiar. Somos revoltadas porque ter um filho com deficiência é uma condenação vitalícia a pedir sempre por favor por aquilo que é simplesmente nosso direito básico de existir e sobreviver.

Explico: o transporte público é o maior exemplo disto. 
Moro em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. Para me deslocar à capital para fisioterapias, tratamentos, consultas médicas, tenho duas opções - o metrô e o ônibus. O ônibus, que poderia ser o meio mais prático e rápido, não disponibiliza veículos adaptados a cadeirantes. A solução? Contar com a boa vontade de motoristas e cobradores para que nos ajudem a embarcar e desembarcar com a cadeira de rodas. Alguns, se negam. Liguei para a empresa responsável e me respondem que eles não tem obrigação (???!!!) de transportar cadeirantes em ônibus não-adaptados pois é perigoso se responsabilizar por eles. Rebato que eles são responsáveis por TODOS os passageiros que transportam, os com deficiência e os sem. Peço então, se seria possível destacar um dos raríssimos (2 ou 3 veículos para mais de 70 linhas) veículos adaptados a pelo menos um de meus horários de necessidade. Recebo a informação de que esta decisão não é deles, mas da reguladora do transporte metropolitano, a Metroplan. Liguei para lá em setembro do ano passado, não me atenderam. Enviei email e estou aguardando a resposta até hoje. 
Ah, sim, o metrô. Para chegar até a estação, preciso de um ônibus. As linhas que oferecem a modalidade integrada - aliás da mesma empresa do transporte intermunicipal - adivinhem? não tem veículos adaptados. Ou seja, viramos reféns em nossa própria cidade. Ou reféns da bondade alheia.

Semana passada aconteceu de novo. Fui pegar o ônibus que duas vezes na semana uso para levar Caio ao Cuevas, em Porto Alegre. Existe uma linha intermunicipal que me deixa bem próximo da sua terapia. Mas não é adaptado. Ir, eu sempre consigo, motorista e cobrador são compreensivos e nos ajudam. Só que semana passada, além do veículo não ser adaptado, a porta traseira ainda tinha uma barra de ferro que impede que a cadeira entre no veículo, mesmo que elevada pelos braços de outras pessoas. A sorte é que eu não estava sozinha no ponto de ônibus e aí o pai ficou, com a cadeira do Caio, e eu segui carregando ele no "muque". A cobradora me questiona, cheia de razão: tu deverias esperar o próximo ônibus. O quê? Esperar o próximo? Cujo intervalo é de hora em hora? Ainda respondi: tenho horário para a terapia dele, não posso esperar.

E aí a ficha cai de novo, quando a gente quase quer esquecer: é isso que revolta! Temos que viver nos justificando. Olha, eu não estou passeando, viu? Temos compromissos de saúde! Danem-se o que vamos fazer! Não interessa onde estou tentando ir, com que propósito! Não perguntam aos demais passageiros, se eles precisam mesmo pegar este ônibus ou se preferem ficar uma hora plantados na parada esperando o próximo! 

O que revolta e cansa exaustivamente é estarmos sempre tendo que dizer onde estamos indo, o que estamos indo fazer, porque precisamos mesmo ir naquele dia, naquele horário, naquele ônibus! A resposta é a mesma: NÃO INTERESSA! Estão nos desrespeitando no direito mais básico do ser humano, que é o de ir e vir. Cansa ter que sorrir e toda hora pedir: "por favor, pode me ajudar a entrar com a cadeira?", "por favor, podemos nos locomover?", "por favor, podemos ir?". "Muito obrigada por nos permitir fazer um tratamento de saúde", "muito obrigada por sua gentileza que nos permite dar um passeio", "muito obrigada por nos deixar ir e voltar pra casa", "muito obrigada por nos deixar existir!". Por mais que eu saiba que sim, nenhum homem é uma ilha e todos precisamos uns dos outros... é desgastante ter que pedir e agradecer para ver respeitado - em parte - um direito tão essencial.

Onde ficam as secretarias ou coordenadorias de defesa dos PCDs? Antes disso, como sempre defendo, os direitos, simplesmente, de um ser humano? De que adiantam as leis de acessibilidade que não são respeitadas? Como pode um país que quer tanto ser reconhecido como desenvolvido ter um transporte público absolutamente vergonhoso e excludente?

Quando saio de uma cidade para outra, num verão com sensação térmica de 44 graus, com meu filho, uma criança cadeirante - passando ainda mais calor que as demais pessoas por sua condição física, para tentar melhorar em parte sua qualidade de vida e ouço de um prestador de serviço público que o correto seria eu esperar mais uma hora por outro veículo que sabemos - não será o ideal - o sentimento que tenho não pode ser outro senão o de muita revolta. Jamais com meu filho. Mas como um sistema público e uma sociedade que lhe fecham as portas, tentando lhe ignorar a existência.

Um comentário:

denise martins ferreira disse...

Cara Dinha, lhe conheci agora através de uma amiga. Também tenho uma filha com deficiência mental e intelectual e milito na defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Sou indignada com as barreiras que a sociedade impõe as pessoas com deficiência e ás suas famílias.Também não tenho a menor dificuldade em ter a minha filha para cuidar e saber que ela depende de mim para ter seus direitos assegurados. O problema está nas explicações que temos que dar por não estar dentro dos "padrões" e com isso tirar as pessoas da zona de conforto e de omissão de atenção e respeito ao próximo. Nossa luta é permanente e também não temos explicações como podem existir leis e não serem cumpridas. Alás, porque deveria ser necessário ter leis para que um ser humano fosse respeitado em suas diferenças? Agradeço a oportunidade de conhecê-la. Vamos continuar e abrir espaços para outros. Minha filha está com trinta anos e pode imaginar como era há mais de 20 anos atrás....
Abraços, Denise